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Visibilidade para quê?

Da infância à fase adulta, como se dá o papel da visibilidade e representatividade na vida de uma pessoa transgênero?

Eu tinha 4 ou 5 anos quando minha mãe jogou meu primeiro par de bermudas xadrez fora. Ela me disse, na época, que haviam sumido. Eu não comprei aquela balela de jeito nenhum. Enfezado, contei para todos da família o que havia me ocorrido: do NADA, um par de bermudas havia desaparecido. Eu sabia que havia sido minha mãe, mas a confirmação veio apenas anos mais tarde, quando minha tia me contou a história de verdade.

Durante minha infância, nunca consegui me ver em nenhuma das princesas, exceto a Mulan. Quer dizer, eu me via no Ping, mas só fui me dar conta disso anos mais tarde, também. Voltando a Mulan, eu amava quando iniciava a sequência, no filme, em que ela cortava os cabelos e colocava a armadura, pronta para a guerra. No entanto, não se engane: não era bem a guerra que me chamava atenção. A cena que eu mais achava incrível era quando ela cortava os cabelos. Eu tinha uma fascinação por aquela cena que chegava a ser bizarra.

Meus cabelos eram como os da Mulan, cortados por um tempo, porque eu havia contraído os temíveis piolhos na escola. Mas era só isso, também. Meus pais tiravam sarro quando eu pegava um pedaço de bambu, dos caniços dos meu pai, e ia para a rua, brincar com as árvores e os varais onde as enfermeiras estendiam os lençóis do hospital (morei em uma rua sem saída e isolada por uns 14 anos). Gritavam: “olha lá a Mulan!”, do quintal de casa. Por algum motivo, aquela frase não me trazia felicidade.

Desde pequeno me acostumei a criar personagens para lidar com o mundo real. Dá pra perceber a carência de identificações ao decorrer da minha vida. Acabei ficando fascinado por piratas a partir dos 9 anos e segui assim até meus 24. Por algum motivo, a figura da pessoa pirata me remete a liberdade. Uma liberdade que eu não conseguia alcançar de maneira alguma dentro de casa.

Na adolescência, começaram a me chamar de sapatão. Machorra. Meus pais me questionavam vira e mexe sobre isso. Como se eu fosse obrigado a dar algum retorno. Eu nem sabia direito o que estava acontecendo comigo. A maior parte do tempo eu estava perdido em meus pensamentos, criando personagens que, mais tarde, compreendi serem partes da minha psique, numa época em que eu não poderia ser eu mesmo por inteiro.

Eu não era lésbica. Nem havia alguém na televisão que me representasse. O mais perto disso que cheguei na infância foi de um filme com a Amanda Bynes chamado “Ela é o Cara” (risos). Pois é. Nesse filme, a personagem finge ser o irmão gêmeo para poder jogar futebol numa escola específica para isso, que ela queria muito, mas os pais não a deixavam, por ser menina. Eu me identificava com a problemática, é claro: ser impedido de fazer coisas por causa das implicações que existem sobre o que se espera da performance de gênero. Devia ter uns 10 anos na época e me via, mais ou menos, naquela menina.

Adotei o nome “Sebastian” (que era o nome do personagem do irmão) por anos, em silêncio. Eu era o Sebastian em qualquer aventura que eu fizesse, dentro ou fora da minha cabeça. Mas ainda não me sentia completo.

Fui obrigado a tomar pílula anticoncepcional quando a monstruação (como João W. Nery costumava chamá-la!) desceu. Foi horrível, mexia com todo meu estado emocional, e eu não entendia nada. Por conta dos hormônios desregulados, acabei ganhando muito peso durante a adolescência. Minha mãe sempre me acompanhando a mil médicos, em busca da fórmula que fosse me transformar num “mulherão”.

Nada daquilo me deixava feliz.

Teve a época em que me chamavam de Juninho Play, daquele sketch do Zorra Total. Eu era “a mulher que se vestia de homem”. E olha que minhas roupas eram bem controladas, pelo menos até os 18 anos. Qualquer tom mais escuro era visto como masculino e eu já não pertencia mais tanto à feminilidade. Aquilo não me irritava, o não pertencer. O que me incomodava era essa busca constante por uma feminilidade que não havia em mim. Ao menos, não daquela forma.

Eu gostava de meninos, então não tinha uma pista assim tão óbvia pra mim, como algumas pessoas pensariam. Aos 18 descobri que me atraía por pessoas, e não por gêneros, especificamente. Foi quando comecei a me identificar como bissexual (depois, aprendi sobre o termo pansexual, onde hoje me encaixo).

Durante toda essa história, eu ainda era uma incógnita. Alguém que flutuava entre rua e outra, entre escola e escola, trabalho e trabalho. Crescendo sem representações que eu pudesse achar.

Em 2016 me deparei com um post sobre um cara trans que posou para a capa da Men’s Health alemã. Eu fiquei encantado! Nunca havia lido uma matéria daquela forma. Lembro de, durante a adolescência, ter me deparado com uma notícia sobre um trans homem grávido, mas na época, foi tão mal escrita que parecia que a pessoa era apenas uma aberração da natureza. Sem ter um texto tão enviesado, o post sobre o cara na Men’s Health abriu novos horizontes para mim. Aos 20 anos, depois de muitas pesquisas e algumas noites sem dormir, finalmente entendi: eu sou um cara. Eu sou um transhomem.

Passei alguns meses em silêncio sobre isso. Conversei sobre com amigos, apenas. Até que um dia minha mãe abriu a porta do meu quarto, exasperada: “afinal de contas, o que você é?”.

Parecia que aquela pergunta estava entalada em sua garganta por anos. Estava na minha também. Na hora, respirei muito fundo e tentei explicar a ela. Ela explodiu. Disse que eu deveria contar já ao meu pai — como sempre acontecia quando eu havia feito “algo de errado”. Fui exposto a uma reunião de família, onde estavam meu pai, minha mãe e meu irmão. Tive que explicar que era um transhomem. Meu pai disse que aceitava que eu fosse lésbica — novamente, nunca fui —, mas aquilo, era demais. Minha mãe, que passaria vergonha na rua.

Passei um bom tempo sem falar com meus pais direito. Até hoje tenho dificuldades com meu pai.

Felizmente muita coisa mudou com minha mãe que, ao se afastar, pôde aprender. Foi na mesma época em que foi lançada a novela cujo protagonista era um personagem transhomem. Muitos menosprezam o valor de uma novela, eu sei. Mas, considerando que a maior parte da população estará assistindo à novela das 9, consigo ver a importância que foi termos esse núcleo em “A Força do Querer”. Foi a primeira vez que um personagem como aquele apareceu enquanto protagonista numa novela. Minha mãe, que nunca sequer deu bola pra causa alguma, de repente começou a compartilhar alguns posts em suas redes sociais. Se entendia enquanto mãe LGBTQIAP+. Isso levou uns dois anos, mas aconteceu.

A história contada pela novela fez minha mãe enxergar seu filho. Assim como aquele cara, na capa da Men’s Health, me possibilitou conhecer a mim mesmo.

Como nem tudo é um mar de flores, passei alguns anos à procura de emprego, após ter assumido minha real identidade. Fui de assistente, num frigorífico, a monitor de informática até parar aqui na DB. Antes ainda passei pelo setor de marketing de uma empresa onde eu fui interrogado, novamente, sobre minha identidade. Todos os dias afirmando e reafirmando-a.

Em 2020 participei do processo para o programa de estágio em parceria com o Centro de Inovação da PUCRS. Eu não acreditava que conseguiria. Era tão difícil — sempre foi. Depois de uns 3 anos tentando emprego em tudo quanto é lugar, desacreditado, eu só podia esperar que, no mínimo, eu aprendesse como se daria o processo.

Fui passando pelas etapas. Nem acreditei. Ainda não estávamos tomados pela pandemia, foi no começo do ano, então foram etapas presenciais. Eu saía de Charqueadas para Porto Alegre, todo feliz e ansioso ao mesmo tempo, porque participar daquele processo, na TECNOPUC, era tudo para mim. Dizia, vira e mexe, pra mim mesmo: “É a oportunidade da minha vida, não posso desgarrar dela”. Então ‘cê imagina a pressão!

Quando recebi o e-mail dizendo que havia passado para a etapa de entrevista, fiquei eufórico e congelado ao mesmo tempo. Eu estava um cadinho mais tranquilo porque já havia retificado meu nome, mas, com as experiências do passado, entrevistas significavam um momento de muita tensão e medo pra mim. Fiquei me perguntando quem me entrevistaria. Como seria? O que eu deveria dizer? Usei os 45 min de viagem de Charqueadas para Porto para refletir sobre tudo isso.

Chegando na PUC, esperei uns 20 minutos para ser recebido. Quando entrei na sala, fiquei surpreso — foi uma surpresa tão boa! Sentado à minha frente havia alguém como eu: um transhomem. E ele ia me entrevistar. Eu tive vontade de chorar na hora! Segurei um pouco, porque precisava falar palavras, afinal de contas, era uma entrevista, e se eu começasse a chorar, ninguém iria me entender. Ele me acalmou e foi super solícito, me fez perguntas e me ouviu com uma atenção que eu nunca vi antes! Pela primeira vez na vida, num processo seletivo — seja ele qual for —, eu pude me sentir mais tranquilo por alguns minutos. Era como se aquela pressão anterior tivesse ido embora.

Acabei chorando e fui acolhido. Ri e também fui acolhido. Não senti os olhares de julgamento, pela primeira vez. Tudo isso enquanto pensava: “meu deus… isso que tá acontecendo aqui é tão importante!”.

Voltei para casa quase que nas nuvens. “Naquele lugar tem pessoas como eu”. Era uma esperança. Finalmente uma esperança.

Recebi um e-mail confirmando que eu havia sido selecionado para o programa. Eu contei pra todos à minha volta, é claro, festejando e bradando! Contei aos meus professores, aos meus amigos, à minha família: consegui um estágio, na área que estou estudando!

Tive que aguardar uns meses por conta da pandemia, mas quando tudo começou, foi só aprendizado e acolhimento! Cada momento foi único e eu nunca teria me sentido minimamente confortável se, desde o começo, o espaço não tivesse sido construído para isso.

Se não fossem as pessoas que estiveram antes, ocupando seus espaços, fazendo sua voz ser ouvida. Que me disseram: “Thomas, vai ficar tudo bem. Você está amparado”, do seu jeitinho. Todos os abraços que recebi, virtuais ou não. Todos os conselhos. Experimentar acolhimento dessa forma, pela primeira vez, tem sido inacreditável.

Esse texto é um breve resumo de algumas partes da minha vida. Uma reflexão sobre o quanto pessoas trans e travestis ainda precisam ocupar espaços. O quanto ainda precisamos vê-las em todos os lugares para que possamos nos reconhecer. Visibilidade importa para você?

Foi com esse espírito que em 29 de janeiro de 2004, reuniram-se 27 pessoas trans e travestis no Congresso Nacional, em busca de reivindicação de seus direitos.  A campanha foi conhecida como “Travesti e Respeito”. Esse compromisso foi firmado 14 anos após a OMS retirar a homossexualidade da lista internacional de doenças. A transexualidade só saiu dessa mesma lista em 2018, e apenas em 2022 foi oficialmente retirada, com a atualização do DMS (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders — Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).

Hoje consigo entender que, embora eu tenha nascido há 25 anos, meu passado data de muito antes. Ele foi construído aos poucos por todas as pessoas que somaram e representaram força contra uma cruel estigmatização de suas vidas. O dia 29 de janeiro é um dia de luta. Onde relembramos nossa existência para a sociedade e bradamos: somos resistência!

Obrigado!

Publicado por Thomas Ramos Paulim


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